quinta-feira, 13 de outubro de 2016

A TEMPESTADE NO DIA DE DESERTO

 - 15-8-13

O vento balança as árvores. O forte zumbido abafa todos os demais ruídos, nada mais se ouve. A cabana, forte, resiste à ventania, e o fogo da  café quentinho que acabei de fazer me anima, apesar do dia estar tão feio.

A chuva forte cai. Não muito longe daqui, um raio praticamente desintegra uma árvore, pondo-a em chamas. O barulho foi ensurdecedor. A solidão é total. Ninguém pode me encontrar, pois os caminhos estão alagados.

A cabana se situa no sopé de uma pequena montanha, próximo à Pedra do Baú, em Minas Gerais, e persiste incólume. Usa-se aqui um lampião a gás nessas horas mais escuras, iluminando o cômodo em que estou, projetando na parece oposta o rosário em que rezo o terço.

Na verdade, apesar do perigo, sinto-me maravilhado com este cenário, porque ele me arrebata do mesmismo de todos os dias e me faz divagar.

Na divagação, percebo, de repente, que tudo isto vai passar: a tempestade vai terminar, o sol voltará a brilhar, o vento se tornará uma brisa suave, o fogo da árvore destruída a chuva já apagou, os pássaros voltarão a cantar, as estradas serão liberadas, mas tempestade igual se passa no meu coração! E agora eu me pergunto: "quando ela vai passar?"

São Bento, abade, já previu, após passar três anos de sua mocidade, aos 19 anos, na solidão, que não é bom morar sozinho. Ele teve muitos problemas, muitas tentações. Conseguiu, então, companheiros e iniciou no ocidente a vida monástica, mas em pequenos grupos de monges. Deram origem aos beneditinos e a tantas outras congregações monásticas. 

O próprio Jesus nunca morou sozinho. Viveu trinta anos de sua vida em Nazaré, vida familiar, e os três anos restantes com os apóstolos e discípulos. Mas ele se ausentava frequentemente, para curtir um pouco de solidão. Acho que devo fazer o mesmo: não morar sozinho, mas de vez em quando me retirar a lugares como este. Faz bem!

O lugar é muito bonito! Havia, aqui perto um padre que tinha sido de uma Congregação religiosa e vivera aqui por vários anos. Ele abandonou tudo para estar neste lugar. Não sei o que houve, se já faleceu...

Eu já morei sozinho até os meus 41 anos, nas casas paroquiais das paróquias em que fui pároco. Realmente, São Bento tinha razão: não é bom morar só.

Estes dias de deserto estão me fazendo bem! Ficar a sós com Deus nos faz entrar dentro de nós mesmos e isso pode doer!

O bispo Dom Edson Damian escreveu com maestria sobre o deserto. Está publicado no blog "Gritar o Evangelho". Diz ele num determinado parágrafo:

"A sós diante de Deus, no despojamento do deserto, não podemos mais nos enganar, nem, continuar nos iludindo e mascarando nossa vida. Prestígio, relações pessoais, sempre mescladas de ilusões e inautenticidades, já não acobertam nossas pretensões e mentiras nem nos desviam da verdade sobre nós mesmos e a realidade que nos cerca".

Quanto a mim, neste lugar deserto, embora cheio de verde e animais, as lembranças congestionam a mente, pululam como os peixinhos na água rasa. São tristes e alegres, agradáveis e doloridas. Todas elas me abstraem, como esta tempestade, que graças a Deus já está terminando; elas me abstraem do aqui e agora, e me levam a outros lugares, e às lembranças do passado.

Algumas dessas lembranças são como nuvens passageiras, correm ligeiras e não voltam mais. Outras são como tempestades de verão, que ficam por pouco o tempo mas me estraçalham. Finalmente, há outras que docemente vão se instalando, me enlevando, e me conduzem ao delicioso sabor de um "quero mais".

Quantas mágoas eu tive que engolir! Quantas peripécias eu tive que vencer! Quantas outras que ainda me envolvem, causadas pelas contrariedades do dia a dia! Não é fácil conviver com outras pessoas! 

Essas lembranças boas me dão esperança, me conduzem, se evoluem e se tornam minhas amigas!

São lembranças de outrora, lembranças de ontem, que voltarão no meu amanhã! Mas eu me pergunto: será que o que estou vivendo no dia de hoje será lembrado por mim amanhã? Será esta uma lembrança boa ou má?

A tempestade já passou. O sussurro do silêncio me chama! A paz da quietude me atrai! Entre os atropelos do mundo, do meu dia a dia, me aquieto e me abrigo nas ondas da noite que está chegando. 

Afastei nestes dias as vozes externas, retirei-me das palavras, numa experiência de silêncio, retraí-me dos hediondos decibéis deste mundo barulhento, que ensurdecem meus ouvidos.

Esse barulho que deixei por alguns dias me agora, me inunda, mas eu me "violento" e me abstraí dele. Para isso, saio de mim mesmo, saio do ruído externo, e me coloco no silêncio do infinito.

É no silêncio que Deus age, e se não aprenderemos a ficar quietos, ele nunca poderá aproximar-se de nós.

Eu trouxera aqui na solidão muitas cartas e endereços para a eles escrever, mas uma jarra de água caiu nelas e neles, e tudo se perdeu. Joguei tudo no lixo e um novo horizonte se espraiou à minha frente! Meditei, então, sobre a pobreza e a simplicidade. Maria nunca mandou carta alguma a ninguém e é a mais santa das mulheres, e a mais lembrada. Jesus nunca escreveu coisa alguma, mas suas palavras se tornaram lei e regra para nossa vida!

Ó jarra de água amiga! Ó vendaval bendito! Ó momento este que me abriga nesta cabana tão isolada! Vocês me trouxeram de volta a esperança perdida do infinito!

Diz o Irmão Carlos de Foucauld: (Passar um tempo no deserto ...)"é um período pelo qual tem de passar necessariamente toda alma que queira dar fruto (...) Deus se entrega totalmente a quem se abandona totalmente a Ele".

Diz o artigo citado de Dom Edson Damian: "A espiritualidade bíblica é incompreensível sem a dimensão do deserto". E cita desde Moisés e Elias até João Batista, "todos eles purificados por Deus no deserto e consumidos aí por seu amor em vista da missão. Até o próprio Jesus, conduzido pelo Espírito ao deserto da tentação e periodicamente indo a lugares ermos para orar".

Por outro lado, diz o artigo, "Somos tentados a fugir do deserto porque é difícil aguentar o vazio, a solidão, as horas intermináveis, a aparente (mas só aparente) perda de tempo. Nossas agendas estão sempre abarrotadas de compromissos. Por formação e cultura capitalista, somos naturalmente voltados para a ação, para os resultados, para extroversão". 

Acho que entendi bem essa parte, ao me ver dentro de uma tempestade interior, logo que me deixei levar pelo espírito do deserto. Tudo o que fui e sou se aflora à minha vista e tenho medo de mim mesmo.

De fato, diz S. Paulo que nada que existe neste ou noutro mundo pode separá-lo do amor de Deus (Rom 8,35), mas ele mesmo pode. Sou a única pessoa que pode tirar-me do amor de Deus. Ninguém mais! Por isso eu me temo: não sei até que ponto sou capaz de me manter no amor de Deus!

Entre o que foi dito acima, algo que é realmente constrangedor é a gente sentir inútil e perda de tempo esse em que a gente passa na solidão num lugar deserto. A gente não sabe o que fazer. Já o Cardeal Van Thuan, ao ser preso (ficou 13 anos preso, sendo 9 de solitária), sentiu-se inútil por não poder gerencias as obras assistenciais e diocesanas de sua diocese no Vietnã. Depois de um certo tempo, talvez uma semana, chegou à esta conclusão: "Escolhi a Deus, não às suas obras!" (ver no livro "testemunhas da esperança" que temos resumido no site). 

Não adianta ganhar o mundo todo mas perder a própria alma, diz Mateus 16,26. Sendo assim, vale a pena enfrentar-me neste tempo de deserto para remodelar-me sob a luz de Jesus Cristo e poder, assim, dirigir-me à vida eterna com todos com quem me uni, ajudei e me deixei ajudar neste mundo.

Quando me pus a fazer dias de deserto, confesso que não gostei muito! Parece, realmente, algo inútil. Entretanto, coisas magníficas acontecem nesses dias ou nessas horas.

Certa vez eu fazia um dia de deserto na cidade gaúcha de Caxias do Sul. Após uma caminhada, cheguei a uma capela numa pequeníssima vila. Havia próximo um cemitério aparentemente abandonado ou pelo menos mal cuidado. Eu já havia pensado em tudo o que estava ocorrendo em minha vida e não sabia mais o que pensar. Entrei, então, no cemitério. O sol do meio dia estava quentíssimo. Havia alguns túmulos em forma de capela, com uma área coberta e cercada por três lados, um dos lados a entrada e o outro, a entrada para onde estava o túmulo.

Deitei-me no chão. Olhei para o alto: na parede havia uma foto de um casal imponente, chique; um estava virado para um lado, e o outro, para o lado inverso, foto só de busto e rosto.

Perguntei-me quem teriam sido! Não havia nome algum. Passou por ali o que parecia ser o coveiro, e lhe perguntei. Ele também não sabia!

A meditação que veio, então, à minha mente, foi a fugacidade da vida, a fragilidade de nosso relacionamento social. Duas figuras imponentes, que talvez brigaram, amaram, lutaram, chorara, se angustiaram por tantos motivos, muitas vezes pisaram nos outros, ou pelo contrário, foram muito bons e prestativos, mas agora jazem ali, inertes e completamente desconhecidos.

"Vaidade das vaidades", diz o Eclesiastes, "é tudo vaidade!" (Ecl 1,2). Essa também foi a resposta que um imponente arcebispo, em seu leito de morte, deu a um padre que lhe perguntara: "Excelência, o que o senhor diz da vida que viveu? O arcebispo respondeu: "Vaidade, meu filho. Tudo vaidade!"

Uma pessoa chega ao fim da vida e percebe que lutou contra o vento, que só viveu na tibieza e na futilidade. Deve ser a maior desgraça que lhe pode acontecer. Eu penso muito nisso. 

Veio-me à lembrança o que ocorrera havia pouco, lá no cemitério: eu me sentara, antes de ir ao túmulo, na calçada da capela, e uma senhora me perguntou se eu queria almoçar, comer alguma coisa. Eu achei isso algo maravilhoso, ou seja, uma pessoa oferecer um almoço a um desconhecido! Isso foi algo de valor: a misericórdia. Isso está ainda sendo lembrado por mim, embora já tenha transcorrido décadas!

A misericórdia numa simplicidade de vida: eis a base sólida e concreta que deve ter a minha vida! Despojo-me de mim mesmo e me coloco diante de Deus, para que ele "se entregue totalmente a mim", como diz acima o pe. Carlos de Foucauld, recebendo-me em sua vida eterna e maravilhosa.

Terminei o rosário e fui preparar algo para comer. A noite chegou. A tempestade acabou.

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