
TOQUINHO, O PARDAL
Na hora do almoço da firma onde trabalho, costumo sentar-me num local gramado e arborizado, com um colega de trabalho. Assim como eu, ele gosta de poesia, música, filmes, livros, cultura em geral. Conversamos longamente nessa hora de descanso.
Sempre nos acompanha, em nossas conversas, um pardal que, entre todos os que ali comem as migalhas que se lhes oferecem, se destaca por um pequeno defeito: não tem cauda. Nós o apelidamos de “toquinho”. Ele é muito engraçadinho, pois parece um ovo de asas.
O Toquinho me fez muitas vezes pensar em nós humanos. Somos todos iguais até certo ponto. Há um momento da vida em que muitos, como o Toquinho, se destacam dos outros e ficam conhecidos.
Quantos pardais estão sempre ali, mas nós só reconhecemos o Toquinho. Quantos seres humanos são especiais e seriam importantes em nossa vida, mas não se destacaram e não ficaram conhecidos.
Certa vez fui a Barra Bonita e, próximo a um rio, num bairro rural, um amigo a uma casa em que haviam perdido o filho de 25 anos,solteiro. Eu tinha pouco menos do que isso.
Ele morara num quarto nos fundos do terreno. Na casa da frente, os pais com sua irmã. Entrei no quartinho: a cama arrumada, tudo como ele deixara havia apenas algumas semanas, quando, indo nadar naquele mesmo rio onde tantas vezes nadava, morreu afogado.
Os seus pais e o meu amigo queriam conversar, pois eram parentes, e eu pedi para ficar ali um pouco. Vi que ele era pintor de quadros. Suas pinturas mostravam um ser angustiado. As pinceladas, fortes e outras vezes fracas, mostravam um “sobe e desce” psíquico.
Motivos sempre na penumbra, pouca luz, sol sempre no ocaso (ou era o amanhecer?)
Vi uma pequena vitrola com um disco limpíssimo. Tomei a liberdade de tocá-lo e dali brotou aquela música lindíssima, o “Adágio” de Albinoni. Era a primeira vez que eu a ouvia.
(quem quiser ouvir esta belíssima música, é só clicar no LINK)
A música saiu do disco e encheu aquele cômodo, fazendo os quadros, colocados nas quatro paredes, ganharem vida e como que as figuras ali pintadas começassem a se mover e chorassem a ausência de quem as criara.
Abri “xeretamente” um caderno: eram poesias. Meu Deus, como isso pôde acontecer? Como pude eu deixar de ter conhecido uma peça rara como esse rapaz, agora morto de modo tão idiota?
Uma certa ira vibrou-me por dentro. Fechei a mão direita e queria dar um murro, só que não sabia em quem ou em quê.
Chorei. Chorei de desapontamento e ao mesmo tempo pela beleza daquele conjunto inusitado de arte. Senti-me como a única peça ali que não combinava; senti-me um intruso, mas gostaria de ter estado ali muitas vezes participando da criação daquele artista tão jovem.
O Adágio de Albinoni terminara. Desliguei a vitrola e o silêncio invadiu o ambiente. Um silêncio mais barulhento do que o que os amigos do Toquinho costumam fazer. Um silêncio que me ensurdecia e me cegava. Quanta arte ali contida! Quanta beleza! Saí de mansinho, para não atrapalhar a harmonia do lugar. Nunca mais me esqueci desse momento de minha vida.
Estou escrevendo isto aqui no gramado da firma, sem o meu amigo: só vejo o Toquinho. No meu pensamento, as cordas dos meus neurônios me tocam o Adágio de Albinoni. Ele mudou-se para São Paulo. Não faço ideia de quando vamos nos ver novamente.
Conversamos algumas vezes sobre a beleza dessa música, em que violinos e o órgão “conversam”, “se comunicam”, dialogam, e agora, enquanto o Toquinho me faz lembrar dele, o adágio me faz lembrar dos três: do Toquinho, deste meu amigo que não está mais aqui para me ouvir, e daquele artista que nunca conheci.
Toquinho: um pardal que se tornou único, por trazer consigo um defeito. Símbolo de tantos que se sobressaem, ou no bem, ou no mal.
Toquinho: um simples pardal, mas que, como tudo o que existe, é criatura de Deus e me faz lembrar dele, de seus sons artísticos ao criar uma natureza tão bela e majestosa.
O Adágio de Albinoni terminou de ser tocado pelos meus neurônios. O relógio insistia em me dizer que chegara a hora de voltar para o trabalho.
A solidão que então senti me fez unir-me à natureza toda, aos “Toquinhos” da vida, aos Albinonis, aos poetas, aos músicos, aos pintores, às flores,às formigas que ali no gramado tanto trabalham, às nuvens que passam apressadas e nunca mais vão voltar.
Ela me faz sentir unido aos amigos que perdi. Aos momentos felizes que tenho vivido nestas nove horas que passo neste árido local de trabalho, em que a única coisa que salva é o gostoso gramado arborizado onde mora o Toquinho.
Teófilo Aparecido
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